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Tecendo a memória

Aos 80 anos, Helena Bemerguy reconta sua infância em livro bordado.

Faltando 15 minutos para o horário marcado para o início das fotos, eu ainda  procurava no quarteirão o “excelentíssimo jardim” indicado no convite. Noto  movimento e portas abertas em uma casa com muros de vidro onde funciona um  escritório de advocacia e desço ali. Ainda molhadas, as plantas pareciam cabisbaixas  por conta da chuva que tinha acabado de cair. Olho para o chão e vejo uma paleta de  tinta gigante, na qual se encaixam vasos de flores. Tive a certeza de que estava no  jardim certo. 

O final do corredor estreito abria para um quintal aconchegante e coberto, onde  se distribuíam cadeiras para os convidados se acomodarem. Uma lona comprida com  ilustração de estante de livros prevenia que as cadeiras fossem molhadas. Os guarda-chuvas abertos, no entanto, em nada protegiam da água, mas cumpriam seus papéis  decorativos pendurados no teto. 

À direita, uma mesa com doces e chocolate quente foi disposta ao lado dos  bordados emoldurados da autora, organizados em uma escada com flores. Os bastidores  formavam um varal de bordados que balançava com o vento ou com a curiosidade de  quem queria ver de perto as obras. Uma boneca de pano escorava-se na garrafa quente e  ao fundo dela, via-se um baú aberto repleto de exemplares do livro. 

Procurei um lugar para me sentar e montar a câmera, enquanto observava dona  Helena, que socializava em uma rodinha de senhoras. Percebi que não via Helena há uns  15 anos, desde a época dos os aniversários de Maíra, sua neta e também minha amiga.  Sorri e me apresentei como a moça que faria as fotos do lançamento. Ela sorriu de volta  e perguntou meu nome, enquanto sentava em uma poltrona vermelha que combinava  com o vestido azul e o tênis moderninho cheio de brilhos e amarrações, para fazer os  primeiros registros. 

Já com um volume considerável de pessoas, Amélia, a filha caçula da anfitriã,  pediu licença para iniciar a apresentação do “Tecituras de Helena”. Ela, a Helena a quem o título do livro se refere, comentava o processo de criação junto dos desenhos de  Bárbara Damas, que foram adaptados em linhas de costura e depois impressos em papel. 

Abria-se o momento de perguntas e eu, que até então estava com os olhos na  câmera tentando me camuflar atrás do móbile de sapatos, levantei a mão. “Queria saber  como foi o processo de ressignificação das suas memórias”, ela me olha e diz “Olha,  minha filha, acho que ainda está sendo. Quer dizer, eu sento e bordo, tendo motivo ou  não. Esse livro eu fiz para deixar de herança para os meus netos, junto das muitas  histórias que eu quero contar no livro e fora dele”, assenti com a cabeça e um “muito  obrigada” e voltei para o meu lugar de espectadora. 

Mais tarde, enquanto ela autografava os livros e eu registrava tudo bem de frente  para a mesa, tentando não enquadrar o copo que ela escondeu atrás das flores, dona  Helena me olha e pergunta se minha dúvida foi sanada. “Profunda a sua pergunta,  menina, eu preciso pensar melhor sobre ela”. E eu, uma jornalista que nutria imensa  curiosidade para além das histórias contadas, pedi timidamente para entrevistá-la no dia  seguinte. Tempo suficiente para que ela processasse o que perguntei. 

Livro Tecituras de Helena.

Na minha época

Nascida em Belém, capital do estado do Pará, no ano de 1937, Helena Aben Athar Bermerguy teve uma infância movimentada, mas sempre tranquila. Irmã mais  velha entre os seis filhos, era ela quem comandava as brincadeiras e, quando necessário,  ajudava a mãe em casa. “Eu vivi o século XX, minha infância não teve internet e  televisão, precisávamos ser criativos”, comenta olhando para o meu celular que fazia  papel de gravador no momento. 

Das tecnologias da época que a menina gostava, o rádio era a predileta. Conta  que passava tardes sentadas na mesa do pai ouvindo as canções e novelas, e só aprendia  músicas se copiasse a letra. Um apreço que foi da palavra falada para a palavra escrita e  a fez criar afinidade com as narrativas textuais. 

“Na minha época, a menina que não tinha diário não estava por dentro da moda,  e tinha que manter ele bem escondido. Eu escondia debaixo do colchão para a mãe não  ver. Tive uma adolescência inteira, logo que entrei no ginásio”. Ela dividia com o caderno os sentimentos do dia e os sonhos juvenis. Mas engana-se quem pensa que  confidenciar segredos fosse um ato movido pela timidez. Helena gostava mesmo de ter  um motivo para contar histórias. 

Ainda no início do livro a escritora descreve Belém como uma cidade única, e  para ela, o melhor lugar. As comidas, os sabores, os igarapés e as mangueiras que subia  para apanhar fruta da janela de casa. Pontualmente fala do pai, que ia à feira e trazia o  paneiro carregado de frutas, depois reunia todos os filhos em volta da mesa para que  provassem e aprendessem os sabores de cada uma. 

”Como disse, meus primeiros pontos foram praticados nos enxovais dos meus  irmãos mais novos”, dona Helena fazia dos bordados mais uma de suas brincadeiras em  uma rotina em que boa parte do tempo era dentro de casa. De família tradicional  judaica, ela sempre foi uma moça reservada pelas questões religiosas, mas o suficiente  para não deixar de se destacar. 

“É que no meu tempo as coisas eram mais diferentes, a juventude era outra”. E  percebo que ela repete essa frase muitas vezes enquanto fala. Mas sem saudosismo. Sem  o desejo de retornar ao passado. Fala com apreço às memórias afetivas que ainda são  vivas na lembrança, e agora eternizadas em um livro que eu tenho em minhas mãos.

Foto: arquivo de Helena Bemerguy.

Vou te contar

Os bordados que antes eram passatempo ganharam outro significado na vida da  jovem. Aos 17 anos, Helena foi “deportada” para Macapá, para que se afastasse de um  namorado cristão. “Eu vim morar aqui muito cedo e sentia muita saudade dos meus pais,  então comecei a bordar minhas histórias e alinhavar algumas coisas no meu texto”. 

Na expectativa de seguir vivendo um amor impossível, o rapaz veio atrás dela  na nova cidade, e lhe propôs um casamento onde ela não precisaria se preocupar em  trabalhar e como diz Vinícius de Moraes: ser só perdão. Tudo o que ela não esperava da  vida. “Eu sempre sonhei com minha independência financeira, porque eu acho que a  mulher tem que ser dona da vida dela”, e preferiu seguir a vida sozinha e focada nos  novos interesses.

Mas como diz a expressão popular: casamento e mortalha no céu se talha. E  fugindo ou não da orientação do pai, o destino amoroso dela foi com um judeu. “Eu era  a única judia em Macapá e só havia um judeu aqui, que era noivo na época. Quando me  conheceu, desmanchou o noivado e nos juntamos, casamos e tivemos quatro filhos.” E  mesmo trabalhando fora e tendo autonomia, Helena dedicou-se à construção de uma  família sólida. 

Mair Naftali Bemerguy e Helena Aben-Athar formaram juntos uma das famílias  tradicionais de Macapá quando a mesma ainda estava em processo de deixar de ser  território do Pará e se tornar uma cidade. “A família é como uma célula, minha filha,  quando ela é boa na sua base, aqui embaixo, ela tende a seguir próspera”. Apesar de ter  se casado cedo, ela se tornou viúva ainda jovem, quando completou 52 anos. 

“Depois dos meus sessenta anos, quando comecei uma nova fase na minha vida,  época em que meus filhos foram morar em Brasília, passei a fazer muitos cursos de  crochê, frivolité, macramê e outros. Foi nesse movimento entre armarinhos que comecei  a pensar na possibilidade de bordar minha história”, diz ela sobre a descoberta dos livros  bordados. Por algum motivo, lembrei-me do poema “O Menino Que Guardava Água na  Peneira” de Manoel de Barros que fala da infância e pergunto se ela conhece, recitando  o primeiro verso para facilitar a lembrança. Ela balança a cabeça positivamente e diz  que foi o primeiro livro bordado que leu e a inspirou. Ri da coincidência e tira da mala  cópias dos desenhos originais que Bárbara Damas fez para o Tecituras de Helena. 

O desejo de dar continuidade a um trabalho que se propôs a fazer na construção  da família não lhe permitiu criar interesse em buscar outro casamento, e assim, o foco de  sua vida voltou-se para a educação dos filhos. “A Bossa Nova passou em minha vida e  não vi”. E nesse momento eu, que a ouvia sentada no chão aos pés da poltrona onde ela  deitava esticando as pernas e permaneço observando os olhos dela. 

Os olhos de Helena são de um acinzentado límpido, mas sem suavidade. Um  olhar que não têm nada de tranquilo e que me atravessaram como a agulha atravessa o  tecido para abrir uma nova casa em um ponto corrido. Penetram e constrangem, mas  não um constrangimento ruim, e sim de quem se perde na transparente da  expressividade deles. E penso que o maior baú de histórias dela talvez esteja guardado  no olhar.

Das memórias que não soube tornar possíveis

“O meu neto de quinze anos sempre diz: vovó você foi professora, hoje você  não é mais. E realmente, o ensino mudou muito, a maneira de ensinar. Confesso que  pelo pouco que vejo meus netos estudarem, percebo uma evolução na forma de estudar,  tem a internet, a leitura dinâmica”. Aposentada como professora de ciências e  matemática, Helena não acredita que existam outros caminhos para o sucesso que não  sejam construídos através da educação. 

E entender a educação como fator modificador a faz se aproximar da realidade  dos netos. Viver e se adaptar ao tempo presente sem grandes esforços e dialogar com  diferentes gerações. “Eu sou um ser político, gosto de acompanhar o movimento do  mundo. E sempre pugnou pelo social, não admito preconceito racial, de gênero… sou a  favor das cotas, políticas públicas para as minorias”. E me mostra em seu celular os  contatos do WhatsApp dos netos, com quem ela fala diariamente. 

Quando lhe perguntei sobre a rotina, recebi um “eu faço qualquer coisa  diariamente” como resposta e achei graça da objetividade dela. Mas compreendi que,  para uma senhora de 80 anos com uma mente pensante e inquieta “qualquer coisa”  sempre há de ser algo construtivo e interessante. Hoje ela nutre o desejo de ensinar a  arte do bordado para quem tiver disposto a aprender e até me oferece uma vaga na  possível primeira turma. 

Decidir bordar a própria história, literalmente, foi uma forma que ela encontrou  de dividir com os filhos os momentos que não teve a oportunidade de contar. Criar  memórias a partir das memórias narradas, mesmo que tardiamente e agora, com mais  uma geração para ouvir e carregar junto toda essa bagagem. Unir a família em uma  única tessitura atemporal. 

“A vida ganha um rumo tranquilo quando o ser humano coloca duas palavras  fundamentais no caminho dele: respeito e paciência. Porque nada é assim como a gente  espera não, às vezes cai, machuca, faz uma curva. Nunca é uma linha reta”. Sabedoria  que a idade e a vida lhe trouxeram, junto com a tranquilidade em saber que perder a  linha não é o fim da costura e sim o início de um novo ponto. 

E deitada em uma poltrona rosa, uma espécie de divã, eu presenciei o que para  mim tinha sido uma das maiores manifestações não governamentais do que seja a

memória. Tão espontaneamente que preenchia o espaço e tudo era motivo de um gancho  ou explicação para existir naquele cômodo, na casa do filho de Helena. Tão pueril como o próprio livro. E com um convite final para um bolo no pátio, e mais conversa. Enquanto ela se adianta passos à frente, eu abro o prefácio do livro e releio “Quando terminei este  livro fiquei pensando se meu pai ao lê-lo não diria: Abu, Helena, Abu*!” 

*Abu significa “mentira” em hebraico.

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