Manejo de açaizais e boas práticas na produção protegem o ecossistema e garantem oferta por açaí de qualidade com alto valor agregado
A partir dos anos 2000, os produtos derivados da polpa ou vinho do açaí, tradicionalmente consumido pela população da porção Norte do Brasil, ganhou o país e, mais recentemente, o mundo. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), o consumo de açaí aumentou a cada ano em média 15%. O açaí é, ao mesmo tempo, o principal componente da dieta de populações tradicionais da região e o fruto essencial da cesta de produtos oriundos da floresta comercializados em escala familiar e comunitária.
A fruta preta, nascida em cachos e nativa da Amazônia, é encontrada em grandes quantidades em áreas alagadas à beira dos rios que percorrem o território amazônico. Graças às suas propriedades nutricionais e ao alto valor calórico, o açaí se tornou queridinho dos atletas e um aliado para uma vida mais saudável. É um alimento rico em proteínas, fibras e minerais, como manganês, cobre, boro e cromo, e em vitamina E, um antioxidante natural que atua na eliminação dos radicais livres.
Essas propriedades, aliadas ao sabor e ao aroma característicos do fruto, tornaram o produto cada vez mais demandado no mercado interno e externo. De acordo com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), a comercialização do fruto movimenta anualmente, em receita, mais de R$ 40 milhões. Os estados do Pará e Amazonas detém mais de 95% da produção do fruto, seguidos por Roraima e Rondônia que juntos somam 0,46%. Em 2020, só o Estado do Pará produziu mais de 1,5 milhão de tonelada de açaí. Desse número, 5,9 mil foram exportados. Os principais compradores internacionais são Estados Unidos da América (EUA), Japão e Austrália, seguidos por nações europeias e asiáticas. Os EUA são o maior exportador de derivados do produto. Os números atuais da produção de açaí na Amazônia impressionam e confirmam a vocação da região para a comercialização do fruto. Mas diante do aumento da demanda, da crescente corrida pelo “ouro roxo”, como também é conhecido o açaí, a sociedade civil organizada, técnicos, pesquisadores e as próprias comunidades têm se perguntado como garantir que o extrativismo do
fruto siga respeitando o equilíbrio do ecossistema, as culturas e os modos de vida tradicionais e dê conta da demanda de mercado.
Manejo sustentável e boas práticas
Muito dessa preocupação vem da particular configuração ecossistêmica da palmeira que origina o fruto, nascida sob o manto da floresta de várzea e com forte relação de mutualidade com a fauna e flora do entorno. O açaí demanda o correto manejo e boas práticas de produção para garantir o máximo potencial da polpa oriunda do fruto. O manejo de açaizais e as boas práticas de produção, com atenção à conservação da biodiversidade, têm sido a aposta de organizações sociais comunitárias para o equilíbrio dessa balança.
Manejar o ambiente florestal significa combinar os açaizeiros com as demais espécies vegetais existentes na floresta, utilizando-se de técnicas, trabalho e consciência ecológica. Por meio da correta operação de manejo, o açaizal produz mais frutos – e outros produtos oriundos da palmeira – com melhor qualidade. Um exemplo de manejo bem-sucedido no coração da Amazônia vem do arquipélago do Bailique, região de ilhas no afluente do rio Amazonas, distante cerca de 12 horas de Macapá, capital do Amapá, e de seu vizinho, território conhecido como Beira Amazonas, também no Amapá. Moradores das duas localidades compõem a Amazonbai, nome comercial da Cooperativa dos Produtores Agroextrativistas do Bailique e Beira Amazonas que tem atuado para garantir a comercialização de um açaí com alto valor agregado e que fomente o desenvolvimento social e ambiental.
De acordo com Amiraldo Enuns de Lima Picanço, 35 anos, presidente da Amazonbai, há 10 anos, o açaí da região era considerado o pior açaí do Estado do Amapá. Entre as causas da má-fama estava a logística. “O Bailique é distante da cidade e o açaí é um produto altamente perecível, então sem estrutura não era possível garantir uma boa qualidade”, explica. Amiraldo conta que, entre os primeiros anos de organização da produção, foi preciso promover as boas práticas de manejo, assim como preparar o correto armazenamento e conservação do açaí. “Hoje, o produtor entrega o açaí para a Amazonbai que armazena na câmara fria do barco da entidade, que conserva no gelo até chegar à cidade, onde será beneficiado na agroindústria”, comenta.
As mudanças estruturais na cadeia produtiva da Amazonbai são reflexos da organização comunitária e do compromisso com a conservação do território. “Somos considerados um dos melhores açaí da Amazônia porque, além de todo esse trabalho de qualidade que a gente tenta garantir, também temos o trabalho das comunidades que inicia lá nos açaizais. É um produto de área que não tem desmatamento, que tem conservação da floresta em pé e tem um diferencial que garante tudo isso que são as certificações”, argumenta Amiraldo.
O papel das certificações na conservação da sociobiodiversidade
As certificações, citadas pelo presidente da Amazonbai, referem-se ao reconhecimento do compromisso da cooperativa com o desenvolvimento sustentável e os impactos ambientais e sociais da comercialização do produto de seus cooperados. A Amazonbai possui o único açaizal certificado e a primeira certificação de cadeia de custódia FSC® (Forest Stewardship Council ® A000541 – Conselho de Manejo Florestal) do mundo para o produto açaí.Além disso, a Amazonbai também possui garantia de proteção de serviços ecossistêmicos locais, sendo a primeira organização do Brasil a cumprir os Procedimentos FSC® de Serviços Ecossistêmicos para conservação dos estoques de carbono florestal e da diversidade de espécies.
O Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) atua, há mais de 25 anos, com a certificação socioambiental que estimula melhorias ambientais, sociais e econômicas no setor florestal. A certificação reconhece que a atuação responsável contribui para a conservação dos recursos naturais, proporciona condições dignas e justas para os trabalhadores e promove boas relações com a comunidade próxima à área, à propriedade ou ao empreendimento certificado. Entre os benefícios alcançados pelos certificados, independente do porte, os que se destacam são: diferenciação dos produtos, participação em mercados mais exigentes, ganhos em gestão e em reputação institucional.
Para Leonardo Martin Sobral, gerente florestal do Imaflora, as certificações são um olhar mais atento para a cadeia do açaí, tanto na perspectiva dos cuidados que devem ser adotados para realizar o manejo do produto, quanto no cuidado com a floresta remanescente. “As certificações avaliam como a atividade impacta os ecossistemas e o modo de vida das populações tradicionais para que eles sejam mantidos. É um conjunto de critérios que olha para as áreas social, ambiental e econômica para garantir a sustentabilidade na produção”, pontua.
O açaí da Amazonbai é oriundo de açaizais nativos produzidos a partir do manejo de mínimo impacto. “Nós acreditamos que esse é um modelo de desenvolvimento para nossa região, principalmente para a cadeia produtiva do açaí, porque nós temos histórico aqui e nos estados do Pará e Amazonas de áreas nativas que estão sendo transformadas em monocultura de açaí. Isso é um risco para o desenvolvimento e conservação da nossa Amazônia, pois descaracteriza o ambiente”, comenta Amiraldo.
A preocupação do presidente da Amazonbai está fundamentada cientificamente: a retirada de outras espécies florestais para ampliação da área de açaizais, ocasionando uma área de monocultura, ou até mesmo a exploração tradicional, em que não há manejo sustentável, causa desequilíbrio. Estudo publicado em 2019 pela Embrapa Amazônia Oriental e Embrapa Amapá, aponta que, em áreas em que não há manejo responsável, as plantas de açaí e de outras espécies espontâneas se distribuem na área de maneira irregular, favorecendo a competição por espaço, luz e nutrientes, o que prejudica o crescimento da palmeira e o desempenho produtivo. Quando há ampliação de açaizais na área em detrimento de outras espécies, também há impactos negativos na diversidade florestal, com risco de comprometer a produção de frutos de açaí, tanto pela ausência de outras espécies que são responsáveis pela reciclagem dos nutrientes que alimentam os açaizeiros, quanto pela ausência de polinizadores.
Alta demanda de mercado e os desafios para Amazônia
Com a acelerada expansão da demanda por açaí é preciso estar atento às configurações do cultivo do fruto. É o que defende Bruno Simionato Castro, coordenador de certificação do Imaflora: “é fundamental apoiar a cadeia do açaí de extrativismo, em virtude de suas configurações tradicionais e de fomento ao desenvolvimento sustentável de famílias amazônidas. Sabemos que existe um movimento de discussão do plantio de açaí para uma produção de escala, como por exemplo a utilização de áreas degradadas e sistemas agroflorestais. Trata-se de um outro processo que precisa ser acompanhado de perto, mas sem perder de vista a importância de se desenvolver o extrativismo”, defende.
Geová Alves, presidente da Associação das Comunidades Tradicionais do Bailique (ACTB), destaca o comprometimento dos cooperados da Amazonbai como elemento positivo para o desenvolvimento da região e o fortalecimento do açaí como principal produto comercializado. “É um trabalho de conscientização que ocorre há mais de 20 anos. Primeiro com a coleta do palmito e agora com o açaí. Por exemplo, nós não coletamos todo o potencial de açaí da floresta, grande parte da safra fica por lá e vai alimentar os pássaros, vai permitir que a as espécies se renovem, que haja regeneração natural por conta de um volume muito grande de sementes de outras espécies que são polinizadas”.
A Embrapa desenvolve projetos de pesquisa e extensão com os produtores da Amazônia, com destaque para os estados do Pará, Amazonas e Amapá. A recomendação da instituição é aplicar as tecnologias que buscam a adequada distribuição de árvores, açaizeiros e outras palmeiras em toda área a ser manejada. Esse ordenamento reduz a competição por água, luz e nutrientes e proporciona dentre outros benefícios, o aumento da produtividade de frutos de açaí, a manutenção ou aumento da biodiversidade do ambiente, além da diminuição do esforço e do risco de acidentes na coleta de cachos com frutos, já que os apanhadores de frutos, conhecidos como peconheiros, escalarão estipes mais robustos e de menor porte.
Do ponto de vista econômico, a ampliação do mercado é positiva, pois gera renda para as famílias e movimenta a economia local. Contudo, argumenta Amiraldo, é preciso estar atento aos desafios sociais e ambientais. “É preciso fomentar políticas públicas que deem conta de suprir as necessidades dos povos das florestas. E, também, para que esse crescimento não ocasione problemas irreversíveis”, diz o presidente da Amazonbai.
Entre os pontos levantados por Amiraldo estão a necessidade de garantir que as técnicas de manejo e produção de açaí favoreçam a manutenção dos ecossistemas de várzea, inclusive com sua diversidade de fauna e flora. A Embrapa elenca ações para garantir que a demanda não ocasione problemas, entre elas: o cultivo de açaí em áreas de terra firme precisa superar o desafio da monocultura, por meio de técnicas de manejo mais agroecológicas e menos dependentes de pesticidas e inseticidas; o desenvolvimento de equipamentos e tecnologias visando a melhoria das técnicas de coleta do fruto, de forma a diminuir os riscos para os coletores e também a dependência de mão de obra jovem na atividade; promover iniciativas de utilização adequada do resíduo do açaí, em especial dos caroços; regularização fundiária das áreas ocupadas por populações tradicionais, como forma de garantia da permanência dessas populações na atividade produtiva do açaí; o fomento ao cooperativismo voltado tanto para a industrialização do produto pelas próprias comunidades quanto para a comercialização do mesmo, in natura ou beneficiado, é uma estratégia capaz de evitar o domínio desse processo por grandes empresas, melhorar a geração de renda para as comunidades extrativistas uma vez que as torna mais independentes da relação com intermediários e aumentar sua capacidade de inserção no mercado.
Sobre o Imaflora
O Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) é uma associação civil sem fins lucrativos, criada em 1995 sob a premissa de que a melhor forma de conservar as florestas tropicais é dar a elas uma destinação econômica, associada a boas práticas de manejo e à gestão responsável dos recursos naturais. O Imaflora busca influenciar as cadeias produtivas dos produtos de origem florestal e agrícola, colaborar para a elaboração e implementação de políticas de interesse público e, finalmente, fazer a diferença nas regiões em que atua, criando modelos de uso da terra e de desenvolvimento sustentável que possam ser reproduzidos em diferentes municípios, regiões e biomas do país. Mais informações: www.imaflora.org
Sobre o Projeto: Economia Comunitária Inclusiva no Amapá. Construção de Cadeias de Valores.
O projeto desenvolvido pelo Imaflora busca construir uma nova economia de base comunitária em uma das regiões mais vulneráveis da Amazônia brasileira, tendo como pilar central o manejo sustentável dos recursos naturais, focado na cadeia produtiva do açaí. Para isso, atua em todas as fases relacionadas ao processo de certificação do produto açaí coletado e beneficiado pelas comunidades tradicionais agroextrativistas do Estado do Amapá. A certificação socioambiental FSC entra nesse processo como uma ferramenta complementar de monitoramento da gestão territorial e dos negócios florestais que englobam questões sociais, econômicas e ambientais.