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[Coluna] O véu da beleza e a angústia da morte

Por Silvio Carneiro - Psicanalista

O mês de outubro é dedicado à conscientização sobre o câncer de mama – doença cujo diagnóstico, sintomas e tratamento têm um impacto emocional profundo não só na pessoa doente, mas em todo o seu círculo familiar/social. Tanto a doença em si quanto o tratamento, podem provocar alterações significativas na aparência da mulher, como perda de cabelo, ganho ou perda de peso, cicatrizes cirúrgicas, manchas vermelhas, perda da mama e cansaço (que pode retirar a motivação para a realização de atividades de que anteriormente se gostava, levando a pessoa à depressão). Mulheres jovens, muitas vezes, têm que se confrontar com a eventualidade de uma menopausa precoce induzida pela quimioterapia. Muitas apresentam sintomas de ansiedade pela incerteza do diagnóstico, medo da morte pela doença ou medo do tratamento.


Freud, o criador da psicanálise, afirmava que uma perturbação física ou mental pode ocasionar uma diminuição da autoestima, podendo causar até uma incapacidade de amar e um empobrecimento do eu. Isso porque a ideia de nosso corpo, a nossa percepção sore nós mesmos vem, muitas vezes, de alguma doença dolorosa.
Procedimentos cirúrgicos são atos que marcam o corpo de uma pessoa. E, levando em consideração o fato de que é impossível separar a mente do corpo, uma castração ou mutilação real gera um significado importantíssimo sobre a imagem corporal e, no caso do câncer de mama, sobre a vivência da feminilidade para cada mulher que fez ou precisará fazer a cirurgia de mastectomia – que é a retirada da mama.


Uma das questões mais frequentes está relacionada à sexualidade e à feminilidade. Depois da cirurgia, é comum o surgimento de inibições sexuais e até mesmo a recusa do ato sexual. Uma paciente comentou outro dia sobre a sua dificuldade em ver seu corpo no espelho depois da cirurgia e como ela percebe o olhar de ” nojo” de suas filhas. Uma de suas filhas pediu para não mostrar mais a cicatriz da cirurgia, por ela ser “muito feia”. Desde então, esta paciente não fica mais sem roupa na frente das filhas nem do marido. Durante as relações sexuais, sempre usa uma camiseta para “tampar o vazio onde tinha o seio”.


A angústia de muitas mulheres está mais ligada aos efeitos da perda vivida no corpo do que à possibilidade iminente da morte, mesmo nos casos mais graves da doença. A maioria das mulheres com câncer de mama apresentam uma resistência maior em relação a tratar abertamente da morte. É comum termos medo da morte. Mas geralmente, a noção que temos da morte é como algo distante. Assim, a perda de uma mínima parte do corpo é imediatamente mais sentida e incômoda do que a própria ideia da morte.


Em psicanálise, chamamos narcisismo o amor que todos nós temos pela nossa própria imagem. A perda de um seio reatualiza outras perdas e provoca um abalo narcísico nas pacientes – isto é, muitas começam a criar aversão à própria imagem. Como consequência disso, muitas mulheres verbalizam o medo de não serem mais amadas e, consequentemente, de serem abandonadas pelos seus parceiros amorosos, pois elas não se consideram mais desejáveis. E aí entra uma importante questão para a psicanálise: O desejo.


Todo ser humano tem como referência social o olhar do Outro – como os outros nos percebem. É o que o psicanalista francês Jacques Lacan formulou na sua teoria do espelho, na qual a imagem do nosso corpo se forma em nossa mente através da relação especular com o outro. Esse “espelho” que é o olhar do outro sobre nós se torna uma concepção psicanalítica, um instrumento essencial no destino de cada sujeito, apoiado na ideia de que o ser humano é um ser prematuro ao nascer e que apresenta uma descoordenação motora constitutiva. O sujeito se reconhece na imagem que lhe é oferecida através do olhar do Outro e que tem como efeito a formação do eu.


Na teoria psicanalítica, o corpo pode ser entendido de três formas: Pelo imaginário, pelo simbólico e pelo real. O corpo imaginário é aquele que nos dá uma unidade narcísica, isto é, amor próprio. O corpo simbólico é aquele que se articula com o Outro, ou seja, com o mundo externo (pessoas e coisas). Já o corpo real é a fonte dos nossos impulsos que buscam incessantemente o prazer do gozo. Quando esses impulsos de prazer se tornam excessivos e não encontram vazão no simbólico, esse excesso produz mal-estar, que é a fonte de sofrimento humano.
O sofrimento nos ameaça a partir de três dimensões: A do nosso próprio corpo em relação à decadência e à dissolução; a do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, a de nossos relacionamentos com os outros.


Assim, nos vemos às voltas na clínica com uma das fontes de mal-estar humano: o corpo. A perda da mama na mulher marca, de forma incisiva, o confronto da paciente com a realidade da doença. A mulher que apresenta um câncer de mama se vê diante da contingência de um corpo afetado pelo efeito real da castração.

Em geral, qualquer imagem pode ser tomada como um véu. Por exemplo: Um quadro que esconde aquilo que falta, ou até uma produção artística que provoca o olhar. Assim, se a imagem corporal esconde o vazio, a doença coloca em cena a imperfeição do corpo, na medida em que revela a fragilidade e a temporalidade da carne. A doença aponta para o ponto não refletido no espelho e que falta à imagem, despertando a angústia.


Na clínica, deparamo-nos com uma diversidade de respostas das mulheres ao vazio deixado pela retirada do seio. Muitas mulheres buscam reconstruir a imagem corporal, ou seja, investem na imagem corporal tentando preencher esse vazio. Observamos, por exemplo, o cuidado com que se apresentam para o atendimento: Os diferentes adornos que utilizam em seus corpos, as perucas e lenços na cabeça, as maquiagens no rosto, além dos enchimentos que velam a ausência dos seios. Esses diferentes véus visam atrair o olhar para um lado e ocultar o vazio de outro. A ambivalência da função do véu, que atrai o olhar ao mesmo tempo que vela o vazio, parece, por vezes, denunciar exatamente o ponto que deveria ocultar, revelando o real e despertando a angústia.


A escuta de pacientes com câncer de mama nos mostra, portanto, que muitas mulheres, diante da amputação do seio, ou seja, diante do confronto com a castração real, reagem à amputação reinvestindo na imagem corporal. As roupas e os adornos são utilizados, muitas vezes, como forma de contornar essa ausência, de abordar o feminino, ou mesmo como forma de se esquivar do feminino, de não se haver com o real. Então, resta a cada mulher inventar uma saída diante desse vazio.


Alguns casos clínicos nos mostram que a mastectomia tem como efeito a perda da capacidade de investimento na imagem corporal. Essas mulheres recobrem o corpo, evitam olhar-se no espelho, assim como evitam ser olhadas, e frequentemente desenvolvem uma inibição sexual, recusando totalmente o ato sexual. Elas não se sentem mais desejáveis e, portanto, femininas.


Por fim, chegamos à conclusão de que, ainda que o belo não remova o real, ele oferece uma distância estética do real, operando como uma barreira protetiva. Assim, o belo é um véu que recobre o real e causa o desejo, permitindo suportar o trágico e evitar a angústia diante da proximidade da morte.

Colunista
Silvio Carneiro Bastos Neto é graduado em Jornalismo (UEPB). Possui formação em Psicanálise Clínica (IBPC; Campinas-SP) e Terapias Holística (Instituto 3ª Visão; Garibaldi-RS). Possui pós-graduação em Psicologia Positiva (PUCRS; Porto Alegre-RS) e Docência do Ensino Superior (Meta; Macapá-AP).
Contatos: (96) 98132-2705 (Whatsapp) / carneiro.silvio@gmail.com
Redes Sociais: @silviocarneiro_psicanalista (Instagram) / @silviocarneiro.psicanalista (Facebook)

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