Violência contra a mulher e a pandemia esquecida: como o aumento dos casos de estupros e agressões criou um cenário de guerra às mulheres
O descrédito e a falta de atenção na hora de realizar uma denúncia afasta as mulheres da busca por justiça. O índice médio de feminicídio no país é de 0,34 assassinatos a cada 100 mil mulheres.
Enquanto o novo coronavírus se alastra e dizima milhares de pessoas por dia em todo o mundo, outra pandemia, ainda vista como sem importância, ganha força: a da violência contra a mulher. No primeiro semestre de 2020, 1.890 mulheres foram mortas de maneira violenta em meio à crise humanitária da Covid-19, um número significativamente maior em comparação ao mesmo período de 2019.
O isolamento social provocado pela quarentena obrigou muitas mulheres a conviver com os seus agressores por mais tempo em casa, resultando em episódios que podem não ter entrado nas estatísticas em razão da dificuldade no registro das denúncias. Somente neste ano o país teve 119.546 casos de lesão corporal dolosa em decorrência de violência doméstica.
A campanha “Call” foi criada pelo Instituto Maria da Penha e aborda a violência doméstica no contexto da quarentena. Em uma chamada de vídeo com colegas de trabalho, a personagem Carla vive em um cenário de agressão e pede ajuda aos companheiros. O intuito da produção também é conscientizar as pessoas sobre a importância de estar atento aos sinais e saber como ajudar mulheres que sofrem violência doméstica.
Tipos de violência
Existem cinco tipos de violência previstos na Lei Maria da Penha: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial − Capítulo II, art. 7º, incisos I, II, III, IV e V. Entenda cada uma delas:
- Violência Física – Entendida como qualquer conduta que ofenda a integridade ou saúde corporal da mulher. (Espancamento; atirar objetos; sacudir e apertar os braços; estrangulamento ou sufocamento; lesões com objetos cortantes ou perfurantes; ferimentos causados por queimaduras ou armas de fogo; tortura).
- Violência Psicológica – É considerada qualquer conduta que: cause dano emocional e diminuição da autoestima; prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento da mulher; ou vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões. (Ameaças; constrangimento; humilhação; manipulação; isolamento – proibir de estudar e viajar ou falar com amigos e parentes; vigilância constante; perseguição contumaz; insultos; chantagem; exploração; limitação do direito de ir e vir; ridicularização; tirar a liberdade de crença; distorcer e omitir fatos para deixar a mulher em dúvida sobre a sua memória e sanidade “gaslighting”).
- Violência sexual – Trata-se de qualquer conduta que constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força. (Estupro; obrigar a mulher a fazer atos sexuais que causam desconforto ou repulsa; impedir o uso de métodos contraceptivos ou forçar a mulher a abortar; forçar matrimônio; gravidez ou prostituição por meio de coação; chantagem; suborno ou manipulação; limitar ou anular o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher).
- Violência Patrimonial – Entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades. (Controlar dinheiro; deixar de pagar pensão alimentícia; destruição de documentos pessoais; furto, extorsão ou dano; estelionato; privar de bens, valores ou recursos econômicos; causar danos propositais a objetos da mulher ou dos quais ela goste).
- Violência Moral – É considerada qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. (Acusar a mulher de traição; emitir juízos morais sobre a conduta; fazer críticas mentirosas; expor a vida íntima; rebaixar a mulher por meio de xingamentos que incidem sobre sua índole; desvalorizar a vítima pelo seu modo de se vestir).
Ciclos da violência
Para mulheres que vivenciam relações abusivas em matrimônio, existe um método que ajuda a identificar as várias faces da violência doméstica. De acordo com a psicóloga norte-americana Lenore Walker, as “agressões em um contexto conjugal ocorrem dentro de um ciclo que é constantemente repetido”:
FASE 1 – Aumento da tensão
Nesse primeiro momento, o agressor mostra-se tenso e irritado por coisas insignificantes, chegando a ter acessos de raiva. Ele também humilha a vítima, faz ameaças e destrói objetos.
A mulher tenta acalmar o agressor, fica aflita e evita qualquer conduta que possa “provocá-lo”. As sensações são muitas: tristeza, angústia, ansiedade, medo e desilusão são apenas algumas.
Em geral, a vítima tende a negar que isso está acontecendo com ela, esconde os fatos das demais pessoas e, muitas vezes, acha que fez algo de errado para justificar o comportamento violento do agressor ou que “ele teve um dia ruim no trabalho”, por exemplo. Essa tensão pode durar dias ou anos, mas como ela aumenta cada vez mais, é muito provável que a situação levará à Fase 2.
FASE 2 – Ato de violência
Esta fase corresponde à explosão do agressor, ou seja, a falta de controle chega ao limite e leva ao ato violento. Aqui, toda a tensão acumulada na Fase 1 se materializa em violência verbal, física, psicológica, moral ou patrimonial.
Mesmo tendo consciência de que o agressor está fora de controle e tem um poder destrutivo grande em relação à sua vida, o sentimento da mulher é de paralisia e impossibilidade de reação. Aqui, ela sofre de uma tensão psicológica severa (insônia, perda de peso, fadiga constante, ansiedade) e sente medo, ódio, solidão, pena de si mesma, vergonha, confusão e dor.
Nesse momento, ela também pode tomar decisões − as mais comuns são: buscar ajuda, denunciar, esconder-se na casa de amigos e parentes, pedir a separação e até mesmo suicidar-se. Geralmente, há um distanciamento do agressor.
FASE 3 – Arrependimento e comportamento carinhoso
Também conhecida como “lua de mel”, esta fase se caracteriza pelo arrependimento do agressor, que se torna amável para conseguir a reconciliação. A mulher se sente confusa e pressionada a manter o seu relacionamento diante da sociedade, sobretudo quando o casal tem filhos. Em outras palavras: ela abre mão de seus direitos e recursos, enquanto ele diz que “vai mudar”.
Há um período relativamente calmo, em que a mulher se sente feliz por constatar os esforços e as mudanças de atitude, lembrando também os momentos bons que tiveram juntos. Como há a demonstração de remorso, ela se sente responsável por ele, o que estreita a relação de dependência entre vítima e agressor.
Um misto de medo, confusão, culpa e ilusão fazem parte dos sentimentos da mulher. Por fim, a tensão volta e, com ela, as agressões da Fase 1.
Justiça
Em setembro deste ano, a empresária Ana Kátia Silva, de 46 anos, foi morta pelo namorado com um disparo de arma de fogo. O agressor foi o policial Leandro Freitas, de 29 anos. A defesa afirma que o tiro foi acidental. O caso foi registrado como feminicídio.
Dias após o assassinato de Kátia, família e amigos criaram um ato em memória da empresária. Em frente à inúmeras casas espalhadas pela capital era possível ver uma faixa branca estendida, simbolizando paz e pedindo por justiça. Nas redes sociais, as publicações de fotos e vídeos eram marcadas pela hashtag #JustiçaPorKátiaSilva.
Na quarta-feira, (30), mais um caso de violência contra a mulher veio a público, quando uma jovem resolveu publicar o seu relato como vítima de agressão. Através dos seus perfis na internet, a jovem explicou que chegou a apanhar até mesmo quando estava grávida. O acusado, que ainda não se pronunciou sobre o caso, é um grafiteiro conhecido por ter várias de suas produções espalhadas pela cidade.
Nas redes sociais, várias pessoas estão se mobilizando para apagar as artes do grafiteiro dos muros da cidade. A Redação do Café com Notícia não conseguiu contato com nenhuma das partes.
Assédio
É muito comum relatos de mulheres vítimas de assédio e/ou algum tipo de constrangimento ao longo da vida, é raro encontrar alguma delas que não tenha passado por situações desse tipo em ônibus, na sala de aula e até mesmo em provadores de lojas, como foi o caso da advogada Nelayne Bentes, de 29 anos. Enquanto experimentava algumas roupas em uma loja da cidade, a especialista em advocacia criminal flagrou um homem que a filmava por cima do provador ao lado. A denúncia feita por Nelayne foi lavrada como termo circunstanciado, ou seja, uma infração de menor potencial ofensivo, tipificado no art. 216-B do Código Penal.
216–B. Produzir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado sem autorização dos participantes: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e multa.
“O sentimento que eu tive na hora foi de vergonha, me senti violada. Era um momento íntimo em que eu estava seminua. Nunca esperamos que algo desse gênero vá acontecer com a gente. Eu tenho uma filha, e eu penso que isso poderia ter acontecido com ela, com a minha irmã. É um sentimento desolador de vulnerabilidade, é doloroso”, afirma a advogada.
Nelayne explica ainda que foram encontrados vários vídeos e fotos de outras mulheres no celular do acusado, e que ele ainda tentou se livrar do aparelho ao ser abordado pela polícia, negando ser dono do objeto.
“Além da violência que a gente sofre, existe a violência estrutural, porque sofremos com o descrédito. Logo quando eu saí do provador chamando a atenção das pessoas e pedindo ajuda, ele saiu da cabine me chamando de doida, louca, dizendo que eu estava constrangendo ele e o acusando de algo que ele não tinha feito. Se o funcionário da loja não tivesse visto e se não tivéssemos encontrado o celular dele com as provas, eu teria sido totalmente desacreditada”.
Casos subnotificados
Pra muitas mulheres, fazer uma denúncia formal ainda é um obstáculo. Parte dessa desconfiança se dá ao fato delas não acreditarem na resolução dos casos e por serem culpabilizadas pelos agentes do setor público, mesmo estando na condição de vítimas. Assim surge as subnotificações, ou seja, casos que não são contabilizados por falta de registro da ocorrência, e por conta disso não é possível ter um número preciso de casos oficiais.
“A palavra da mulher não vale de nada, a gente não tem credibilidade e nem paz! Uma pessoa assim não para, ele nunca parou. É preciso ter essa coragem, dar a cara a tapa. Quantas pessoas tem os seus vídeos divulgados na internet e não sabem? E eu tive a oportunidade de ver e tentar impedir “, diz Nelayne com revolta.